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Foto do escritorMarcelle Xavier

Quando me aceito como sou, então posso mudar


Se você gosta de ouvir ao invés de ler, clique aqui e escute o áudio desse conteúdo: https://on.soundcloud.com/ivSHb 

Sabe aqueles momentos ahá nos quais você percebe que conseguiu colocar uma teoria em prática? Para mim um desses momentos foi o caso que eu nomeei como a história do “faz o que você quiser com as rolhas” que aconteceu há uns 2-3 anos.


Eu e meu namorado sempre tivemos opiniões opostas em relação ao hábito de guardar ou não as rolhas. Eu a favor, e ele contra. Certo dia, ele encontrou algumas rolhas de vinho dentro de uma vasilha no armário e nós entramos em um diálogo sobre esse polêmico tema que rondava há meses o nosso lar: o que fazer com as rolhas de vinho?


Esse era um tema que me gerava muita irritação. Me parecia absurda a atitude dele de não querer guardá-las, afinal as rolhas são como passaportes que atravessam o tempo e nos transportam de volta para memórias de momentos que passamos juntos.


Ok, isso pode parecer um pouco exagerado, mas ele não querer guardar as rolhas parecia um descaso pra mim, uma afronta ao meu desejo de cultivar esse ritual compartilhado, uma falta de conhecimento até. Mas ele não curtia guardar as rolhas, e não curte guardar nada na verdade, e sempre que eu distraía ele jogava a rolha fora antes que eu percebesse.


Nesse dia eu me vi tomada (mais uma vez) pelo ímpeto de convencê-lo sobre a importância das rolhas, e de como ele estava sendo “sem noção” de não perceber algo quase óbvio. Eu queria ensiná-lo (ou seria doutriná-lo?) sobre esse ato milenar do cultivo das rolhas. Mas nesse dia, antes que eu começasse a falar, eu fiz uma pausa, e nessa pausa ele falou:


“Eu não gosto de guardar as rolhas e não vou começar a gostar, então por mim eu jogaria fora (pausa dramática). Mas se você gosta de guardar, pode guardar e eu até te ajudo a encontrar um quadro para elas se você quiser. Por mim, você pode fazer o que quiser com as rolhas”.

Nesse momento, ainda passou um rápido raio na minha mente dizendo você precisa contar para ele a importância das rolhas, ele ainda não entendeu.”. Mas antes que eu dissesse algo, veio outro raio ainda mais rápido, agora me dizendo: “nós não precisamos gostar das mesmas coisas. Ele aceitou a minha necessidade de guardar as rolhas, porque eu não poderia aceitar o fato dele não se importar com elas?”


É muito comum nas nossas relações criarmos expectativas sobre como as pessoas deveriam se comportar, pensar e até sentir. Fazemos isso o tempo todo e muitas vezes não percebemos que até no nosso suposto cuidado com o outro, há muitas vezes uma tentativa implícita de imposição do nosso próprio modo de ser e viver.


Quanto de colonização cabe no nosso afeto? Muitas vezes as pessoas que mais amamos são as que sofrem diretamente com a nossa tentativa de modificá-las. Obediência, exclusão, negação, preconceito, aconselhamento, desejo de moldar ou manipular - sofremos e reproduzimos esses padrões nas nossas relações.


Enxergamos as pessoas amadas como objetos, e não como sujeitos e assim negamos a elas tudo aquilo que não é visto por nós como ideal, ou tudo sobre o outro que nosso olhar não consegue alcançar. Mas, não se pode amar o outro a quem se privou de sua alteridade, só se poderá consumi-lo. (Byung)


Eu comecei a pensar nos efeitos desse padrão nas nossas vidas, e enxerguei um enorme ciclo vicioso. O “eu modelado” desde a primeira infância vai sofrendo pequenas e grandes violências para se encaixar. Vamos usar uma metáfora para visualizar este desconforto: ao tentar calçar um sapato dois números a mais ou menos do que o seu pé, nossos pés dão bolhas e machucados, não é mesmo? Imagine só passar uma vida tentando se encaixar em um molde que não te cabe.

Para suportar esse desconforto, nós criamos defesas, medos, inseguranças e distanciamento do nosso eu autêntico.


Logo, nas nossas relações, nossa ação muitas vezes é descolada do nosso desejo, nossos sentimentos não são expressos, nossos pensamentos são editados e nossos relacionamentos vão se tornando superficiais e cheios de julgamentos. A relação não é vital, real, significativa. A verdade é que dentro desse ciclo, não nos sentimos amadas, e vamos também nos tornando incapazes de amar.


“Quando o indivíduo é compreendido e aceito, maior sua tendência para abandonar as falsas defesas que empregou para enfrentar a vida, maior sua tendência de se mover para a frente.” Carl Rogers

A aceitação nasce naqueles momentos nos quais eu percebo e respeito a mim mesma e às pessoas que amo como elas verdadeiramente são. Parece simples, mas esse modo de se relacionar é quase oposto ao nosso modo de socialização. É por isso que aceitar as pessoas é menos um ato único, e mais um processo contínuo, que envolve coragem, desapego e atenção.


Consigo aceitar que essa pessoa fará escolhas diferente das minhas e que eu não tenho controle sobre o que ela vai fazer da sua vida? Consigo confiar que ela tem os recursos para se mover em direção ao que realmente importa para ela? É possível para mim conceber que ela não precisa do meu direcionamento, e apenas da minha atenção e capacidade de validá-la em suas escolhas?


É muito difícil para nós acreditar que as pessoas só precisam de aceitação, e que essa relação desbloqueia uma força enorme. Não é o que aprendemos nas escolas, e nos parece improvável que “seres humanos necessitam de aceitação, e quanto esta lhes é dada movem-se em direção a auto realização”, como nos ensinou o psicólogo Carl Rogers.


Posso te aceitar quando você está com raiva ou cultiva sentimentos negativos em relação a mim? Hoje mesmo ouvi uma história de uma mãe que me contou que sua filha de 4 anos ficou com raiva dela. Eu perguntei “e você explicou para ela o que aconteceu?”, e ela me disse, “não, eu acolhi a sua raiva”. Nessa hora eu entendi, nem sempre importa o que aconteceu porque não é sobre mim, é sobre a experiência subjetiva daquela pessoa.


E agora uma mais difícil ainda: posso aceitar que você não vai satisfazer as minhas expectativas e necessidades, e ao mesmo tempo aceitar que esse seu jeito de ser bate em um limite meu? Eu já me vi em várias situações nas quais eu me percebi tentando aconselhar, educar ou até mesmo manipular outra pessoa, porque caso ela não mudasse seu comportamento eu não conseguiria seguir me relacionando com ela. Às vezes nos falta coragem de aceitar a outra pessoa como ela é, porque sabemos que isso pode significar romper ou modificar um relacionamento importante para nós.


Acredito que a aceitação é um profundo ato de desapego que nos leva da objetificação para o verdadeiro amor. O psicólogo Carl Rogers fala que as pessoas são como ilhas, ou seja, que existe um buraco entre nós, um espaço da nossa subjetividade que não pode ser acessada ou controlada pelo outro, e que as pontes que conectam essas ilhas são construídas quando temos espaço para sermos nós mesmas. Reconhecer que eu não posso e nem devo colonizar a sua ilha, ao passo que vamos construindo pontes entre elas a partir da revelação do nosso eu.


Em alguns grupos ou relações eu sinto que sou aceita apenas até a página dois, em outras até a página três, em outras até a página 50. Percebo que quão mais me sinto aceita, mais uma relação me nutre e sinto vontade de cultivá-la. Noto inclusive que aquilo que diferencia relações saudáveis de tóxicas, é a presença de aceitação. É por isso que precisamos cultivar a aceitação como um ingrediente essencial nas nossas relações e comunidades, criar pontes e reduzir as barreiras para que possamos nos revelar verdadeiramente.


Pesquisa (que embasa a missão do dia)

Em um experimento sobre gagueira, vinte e duas órfãs (algumas gagas, outros não) foram reunidas na Universidade de Iowa. Metade das crianças recebeu terapia da fala positiva – elogiando seu progresso na fluência – enquanto a outra metade recebeu terapia da fala negativa – menosprezando-as por seus erros. Aqueles com gagueira que receberam terapia positiva apresentaram melhora. O mais interessante é que a maioria dos que não gaguejam e foram falsamente castigados desenvolveram problemas de fala - alguns durando o resto de suas vidas. (Fonte: Wendell Johnson (1906–1965) & Mary Tudor)


Nome do artefato: Açude Categoria: Aceitação Tipo: ritual Tempo: 30 min Dificuldade: média Objetivo: ter um espaço seguro de escuta e sem julgamento para compartilhar pensamentos e sentimentos vivos.

Passo a passo:

  1. Encontre seu açude: sugira que as pessoas formem duplas com pessoas da comunidade de acordo com sua vontade e intimidade. Qualquer pessoa pode convidar qualquer outra pessoa da comunidade para que seja seu “açude”. Imagine a pessoa açude como um espaço seguro para transbordar.

  2. Ritmo: o açude pode ser acionado sempre que houver uma vontade ou necessidade de transbordar e desabafar sobre algo. Pode ser importante no início, a criação de um ritmo semanal.

  3. Formato: defina o melhor formato - pode ser uma ligação, um encontro presencial, uma videocall, troca de áudios ou até mensagens de texto.

  4. Acordos:

    1. para quem compartilha: fale livremente, sem filtros, sem elaborações e sem vergonhas. esse é o espaço para isso.

    2. para quem escuta: não interrompa, não dê conselhos, não manifeste julgamentos ou tentativas de resolver o problema ou mudar a pessoa. seu principal papel é oferecer espaço seguro para que a outra pessoa possa ser aceita como é.

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