Pouca gente sabe, mas a criação do Instituto Amuta está diretamente relacionada com um desafio que me acompanhou por uma parcela significativa da minha vida: a minha dificuldade de viver os meus conflitos. Foi a dor que eu vivi e causei em muitas relações desgastadas (e até devastadas) que me despertou a necessidade quase visceral de aprender e disseminar novas formas de estar em relação.
Eu, como muita gente, cresci em um ambiente no qual os conflitos eram vividos de maneira problemática e desenvolvi poucos recursos para lidar com minha raiva e com os meus desconfortos. Na minha infância e adolescência os descontentamentos eram expressos pra mim com crítica, agressividade, imposição e pouca escuta, e ao mesmo tempo, qualquer expressão de raiva da minha parte era percebida como problemática - o que me levava a escalar essa emoção em sua máxima potência.
Eu não sabia conversar, dialogar, ouvir, e quanto mais íntima uma relação se tornava, mais eu apresentava comportamentos durante os conflitos capazes de destruir os relacionamentos. Por isso, a necessidade de viver melhor os conflitos está na base da construção do trabalho que eu faço hoje no Instituto Amuta e foi a porta de entrada das minhas pesquisas sobre relações.
“Amar é ver o outro como legítimo outro na convivência”
Humberto Maturana
Se amar é ver o outro como legítimo outro, como sugere Maturana, criar uma cultura amorosa nas nossas relações envolve inevitavelmente respeitar e viver as nossas diferenças, o que significa que precisamos aprender como vamos viver nossos conflitos.
Só sobrevivemos e evoluímos enquanto espécie porque estávamos em tribos compostas por pessoas com diferentes personalidades e habilidades - precisávamos de alguém forte, alguém que soubesse caçar, alguém vigilante, e por aí vai. Precisamos das nossas diferenças, mas, o problema é que elas criam uma eterna tensão entre o “eu” e o “nós”.
Logo, qualquer relacionamento é uma eterna negociação entre indivíduo e coletivo - temos nossas partes individuais que pedem por expressão, e a necessidade de estar em relação, o que envolve aceitação e convivência com a expressão do outro que é diferente da minha.
O nosso desafio atual (e talvez um dos grandes desafios das lideranças) é saber como coordenar as diferenças - nos níveis de personalidade, habilidade e conhecimento - de modo a criar uma unidade harmoniosa e com mais chance de sobrevivência. É por isso que precisamos não eliminar o conflito, mas criar uma cultura de conflito - regras, rituais, acordos e todo um sistema operacional que normalmente já existe mas é invisível, desconhecido e normalmente insuficiente para que seja possível viver conflitos saudáveis.
No meu trabalho com conflitos, entendi que o primeiro passo para transformá-los é ter a oportunidade de explorarmos juntas as crenças e mitos que carregamos sobre conflito. Assim conseguimos criar novas visões para que esse sistema operacional seja criado com uma lente intencional de Design.
Para te apoiar nessa exploração, resolvi compartilhar aqui 15 aprendizados que desenvolvi ao longo desses anos pesquisando e experimentando novas formas de viver os conflitos. Que esse post sirva então como inspiração (e não como uma regra) para novas conversas sobre conflito nas suas relações, nos seus times e comunidades.
Uma forma de usar essa lista é usar cada uma dessas afirmações como ‘puxa conversa’ e dialogar sobre cada uma delas e como o grupo as interpreta e amplia.
1. Não existe relação profunda sem conflito
Qualquer relacionamento no qual desenvolvemos intimidade, profundidade e proximidade vão em algum momento levar a conflitos, afinal, a convivência intensa e a abertura para que a gente sobreponha nossas existências escancara as nossas diferenças em algum momento. E mais, é a partir do conflito que chegamos a esse lugar de mais profundidade nas relações, logo, evitar o conflito é perder a oportunidade de aprofundar nossos relacionamentos.
2. Conflito é fonte de conexão
O medo do conflito nos atrapalha a criar conexão, afinal, são os momentos que nos desafiam e quebram nossos ideais sobre o outro que nos oferecem as maiores oportunidades de ver a outra pessoa como ela legitimamente é, e evoluir a relação a partir das tensões vividas. É no conflito que a gente descobre mais sobre si, sobre o outro, sobre a relação e sobre o que queremos nos tornar.
3. Conflito não é resolução de problema
A gente acha que um conflito é bem sucedido apenas quando chega a uma solução, mas muitos dos conflitos que vivemos simplesmente não tem solução. Existem dois tipos de brigas - solucionáveis e perpétuas, e, segundo o Love Lab, 69% das brigas são perpétuas e ⅔ dos nossos conflitos não tem solução. Conflitos perpétuos são aqueles que exploram diferenças profundas entre nós, e por isso o problema não vai simplesmente desaparecer, logo, precisamos aprender a conviver com o problema, e a explorar nossas diferenças a partir de um diálogo contínuo, de maneira respeitosa e evolutiva.
4. Se o problema não tem solução, viver a diferença pode ser o caminho
Muitos dos nossos conflitos (especialmente os perpétuos) acontecem porque nos relacionamos com pessoas diferentes de nós - personalidades, valores, sonhos, etc. Um grande erro é tentar transformar as pessoas que se relacionam conosco em uma extensão nossa, ou ainda, perder a oportunidade de se relacionar e se misturar de verdade com o outro porque não temos energia para explorar e aprofundar nossas diferenças. Um dos maiores aprendizados que podemos ter para vivermos relações saudáveis é a capacidade de não ignorar, não excluir e não tentar mudar aquilo que torna cada pessoa única, diferente e por isso mesmo tão potente.
5. É preciso sustentar os paradoxos para encontrar nossos pontos de conexão
Muitos conflitos começam a dar errado quando as pessoas começam a contar uma história que envolve uma polaridade entre “isso” e “aquilo”, uma pessoa quer uma coisa e a outra quer outra. Assim, reduzimos a história e eliminamos as camadas de complexidade por trás de todo desentendimento.
Para a psicoterapeuta Esther Perel, sustentar o paradoxo tem a ver com aceitar que todos nós carregamos dentro de nós uma ambivalência - temos dentro de nós diferentes crenças, atitudes e sentimentos que parecem contrastantes. As pessoas com quem nos relacionamos trazem muitas vezes uma parte de nós mesmas que está sendo negada, e ao invés de reconciliarmos com o paradoxo dentro de nós, dividimos o paradoxo e pegamos metade da história e colocar a outra metade na outra pessoa. Precisamos afrouxar essas polaridades para resgatar a conexão, ampliando a nossa capacidade de lidar com os paradoxos da relação.
6. Muitas vezes o melhor que podemos fazer é ficar um pouco mais com uma questão mal resolvida
Quando as tensões começam a surgir nas nossas relações, temos três tendências: desistir, lutar ou reduzir. Desistimos quando fugimos do conflito, fazemos rodeios, suavizamos as coisas e ignoramos as informações que nos perturbam e desequilibram a relação. Lutamos quando enxergamos as tensões como defeitos a consertar, procuramos culpadas, julgamos os outros e tentamos brigar ou expulsar aquelas pessoas que nos perturbam. E reduzimos quando buscamos uma solução rápida achando que ela vai resolver uma questão complexa, ou seja, quando tentamos olhar pras coisas como se fossem mais simples do que realmente são, quando nos apressamos para a solução e quando não somos capaz de sustentar e viver as tensões nas relações antes de nos apressarmos em resolvê-las.
Grande parte do nosso trabalho é aprender a sustentar as tensões, sem negar e sem exagerar. É aprender a relaxar no desconforto e ficar um pouco mais com aquela situação mal resolvida, mas sem se alienar ao incômodo - se aproximando e se relacionando com ele para aprender um pouco mais.
7. Mesmo quando chegamos a uma resolução, ela provavelmente não será definitiva
Muita gente se frustra porque mesmo quando vive um conflito com qualidade e chega a uma resolução, eventualmente o problema volta, aquele acordo não é cumprido ou um comportamento volta a aparecer. Na realidade, a complexidade das nossas questões requer uma abordagem contínua, acordos e resoluções precisam ser testadas e demoram a ser integradas, e vamos precisar dedicar energia por algum tempo até que aquela questão se movimente (e aí provavelmente outras já terão aparecido). Uma boa gestão de conflitos envolve uma abordagem evolutiva, na qual soluções são substituídas por experimentos que se adaptam frequentemente.
8. Não é possível gerenciar um conflito sem envolvimento emocional
Muita gente acha que a melhor forma de gerenciar um conflito é lógica, racional e pouco emocional. Mas, pesquisas neuropsicológicas demonstraram que emoções e pensamento lógico estão interconectados, e, é na realidade impossível pensar com qualidade sem envolver nossas emoções. Além disso, sem nossas emoções, não conseguimos criar uma conexão genuína que não se reduz a uma troca mental.
Por isso, uma boa gestão de conflito precisa facilitar a autopercepção emocional, a expressão autêntica de nossas emoções, e a compreensão mútua dos afetos movimentados naquelas interações.
9. Emoções (inclusive as mais assustadoras) devem ser integradas e não excluídas
Conflitos que dão errado tem uma coisa em comum - as emoções negativas do outro foram sistematicamente descartadas, minimizadas, invalidadas ou ignoradas. É normal ter algum nível de dificuldade para lidar com as emoções negativas do outro - vivemos em uma sociedade que enaltece a positividade e perceber emoções desafiadoras como inadequadas e como um sinal de problema (e às vezes até de doença). Frente a emoções negativas podemos nos sentir culpadas, nos apressar em eliminá-la, ou pior, nos sentirmos atacadas, com medo e entramos rapidamente na defensiva. Mas emoções negativas não escutadas se intensificam, escalam e aí sim podem levar a expressão problemática como desrespeito, explosão, crítica, desprezo e humilhação.
10. A RAIVA pode ser uma emoção de conexão
A raiva é vista como uma grande inimiga dos conflitos, afinal, quando mal gerenciada realmente ela pode sim nos levar a escalar conflitos e prejudicar a relação de tal forma que se torne difícil ou até impossível regenerá-la. Mas, do ponto de vista da neurociência, a raiva está alinhada com emoções positivas como alegria e excitação, é o que o neurocientista Richard Davidson chama de “emoção de abordagem”.
Na sua pesquisa Davidson identificou que quando as pessoas experimentam emoções que as levam a se retirar do mundo, (como tristeza, medo e nojo) elas tinham uma mais atividade na área frontal direita do cérebro, e quando estavam experimentando ou processando emoções como interesse, curiosidade, alegria e raiva elas tinham uma assimetria frontal esquerda. Essa atividade na esquerda significava que eles queriam se envolver com o que estavam experimentando, em vez de se retirar.
Por isso a raiva é entendida como uma emoção de aproximação, ela nos leva a se aproximar do outro, se expressar, e falar sobre algo que nos importa porque aquela outra pessoa também é significativa para nós. É preciso criar meios para que as pessoas expressem, acolham e escutem a raiva de modo que ela crie aproximação e não afastamento.
11. Não estamos brigando no vácuo e o nosso nível de estresse influencia a qualidade dos nossos conflitos
O estresse é um fator que influencia significamente a qualidade dos nossos conflitos. A pesquisa “Os restos do dia do trabalho” realizada pelo psicólogo Robert Levenson em 2004 no qual as participantes cultivavam um diário de estresse revelou que em dias de maior estresse as pessoas ficam fisiologicamente mais excitadas, com o sistema nervoso sobrecarregado e afogadas em emoções.
As pessoas apresentaram frequência cardíaca, pressão arterial e níveis de hormônio de estresse mais elevados, e mais sinais de sobrecarga no sistema nervoso, o que se espelhou em conflitos com mais discórdia e menos conexão. Sendo assim, cuidar dos conflitos envolve necessariamente cuidar da nossa coregulação emocional de modo a diminuir o estresse no corpo, e, de maneira mais sistêmica, é preciso criar ambientes de trabalho e de vida menos estressantes.
12. Não existe um lado certo e um lado errado
Quando vivemos um conflito, é tentador pensar que estamos certas e que precisamos provar o nosso ponto a qualquer custo. Mas a experiência da realidade é profundamente subjetiva, e por isso não existe nada tão absoluto assim. Todos os pontos de vista são válidos, todas as realidades são verdadeiras e o que realmente importa é validar a experiência, sensação e percepção de cada pessoa envolvida.
13. A maioria dos conflitos envolve uma necessidade não atendida
Muitos dos nossos conflitos nascem da crença arraigada de que as nossas necessidades são tão óbvias que não precisamos declará-las, ou até mesmo do distanciamento que nós temos das nossas próprias necessidades - não sabemos aquilo que precisamos e assim não comunicamos de maneira clara.
A partir dessa crença agimos de modo a evitar a vulnerabilidade de pedir claramente o que precisamos e justificamos as nossas necessidades provando quão ruim a outra pessoa foi conosco. Nossa responsabilidade nos conflitos é comunicar as nossas necessidades, pedir de maneira clara aquilo que precisamos, por mais vulnerável que isso seja.
14. O que acontece fora do conflito também impacta o conflito
Se nos momentos de desentendimentos chegamos com nosso tanque de amor cheio, a chance de vivermos um conflito saudável é significativamente maior do que quando já estamos esvaziadas. E o que enche nosso tanque de amor? A percepção de que somos amadas (apreciadas, vistas, validadas, respeitadas), a sensação de que temos uma conexão forte e a convicção de que estamos seguras.
Em sete estudos longitudinais conduzidos pelo Love Lab seguindo casais por duas décadas, os pequenos e ordinários pedidos de conexão que muitas vezes são ignorados na correria do dia a dia são os maiores preditores de relacionamentos saudáveis e duradouros. Casais felizes respondem positivamente 86% das vezes, e casais infelizes ou que se separaram 33% do tempo. O mesmo vale para qualquer relação, e a melhor forma de garantir que nossos tanques de amor se encham é não deixar ao acaso esses momentos de nutrir nossos relacionamentos.
15. Agendar conversas difíceis cria espaço seguro para vivermos nossos conflitos.
Pesquisas indicam que pessoas que agendam horário para seus desentendimentos conseguem lidar melhor com as suas questões, e criar o distanciamento necessário para viver seus conflitos com mais maturidade. Saber que tem um horário e um espaço apropriados para uma conversa chatinha, ajuda antes de tudo a regular nosso sistema nervoso, além de trazer uma leveza ao saber que teremos um espaço seguro para explorar nossos incômodos.
Existe uma técnica da terapia comportamental que propõe anotar aquilo que nos preocupa e deixar as anotações de lado, se comprometendo a voltar nela em algum horário pré determinado. É como colocar a roupa suja no cesto ao invés de deixar ela espalhada pela casa, você sabe que vai precisar resolver isso em algum momento, mas não precisa ficar toda hora olhando para aquilo. Agendar conflitos tem esse mesmo efeito nas relações.
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E aí? Quais aprendizados você acrescentaria a essa lista?
PS: Apoiamos líderes e organizações a desenhar suas conexões e lidar com conflitos a partir de uma abordagem de Design.
Fonte: Fight Right: How Successful Couples Turn Conflict Into Connection - por Julie Schwartz Gottman PhD e John Gottman PhD; The Secret to a Fight Free Relationship (link)
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