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Foto do escritorMarcelle Xavier

Em caso de vida ou morte, opte pelas relações

Convite especial: Para aprofundar nos temas desse post, acompanhe o Festival Teal Brasil que acontece no dia 10/11 e conta com a presença do autor do livro Reinventando as Organizações, Frederic Laloux. Estarei lá para falar sobre Conexões e amor nas organizações. Inscrições aqui.


Há 50 pessoas em um bote salva-vidas que pode acomodar mais dez pessoas, sendo que há 100 pessoas na água. Ou seja, as outras 90 infelizmente serão deixadas no mar e irão fatalmente morrer. O que você faria?



Talvez você pense que deveríamos deixar viver os que são mais saudáveis, e priorizar crianças à idosos. Talvez priorize idosos, por entender que eles devem ser as pessoas mais respeitadas em uma sociedade. Talvez os mais ricos, que financiaram a viagem e são os donos do bote.


*Spoiler alert: o criador dessa metáfora é um eugenista, nacionalista e supremacista branco.


Antes de se apressar em responder quem você iria salvar, vamos começar com outra pergunta. Qual a definição para o que tem vida?


No século XX, a vida era definida como células que se autorreplicam, metabolizam e estão abertas a mutações. Essa é uma definição do século passado, que segundo o autor Guenther Witzany ignora a comunicação, as trocas, a rede. (Fonte)


Observações recentes mostram que a comunicação, o contexto e as redes são centrais para todas as formas de vida. No século XXI chegamos então a uma nova definição de vida, na qual as interações são centrais para todos os processos da vida.


“Qualquer coisa que não for construída para a era de rede - nossa política, economia, segurança nacional, educação - vai rachar sob sua pressão.” Joshua Cooper Ramo (jornalista)

Partindo do conceito atualizado do que é vida, entendemos que a decisão de quem vamos salvar não é um cálculo frio e matemático que vai nos ajudar a determinar quem vai morrer e quem vai viver.


“Encontrar um caminho é sobre as possibilidades únicas que ocorrem no relacionamento entre pessoas específicas, naquela água específica, naquele dia específico.” Nora Bateson

E como a vida é tratada nas organizações?


A maioria das organizações do mundo se organiza partindo de um conceito ultrapassado do que é vida, uma forma que ignora a interdependência do seu sistema - o contexto, as interações, as relações. E por isso mesmo, muitas delas estão dando sinal de esgotamento.

Organizações são sistemas. E um “sistema é menos uma coisa (um objeto, uma pessoa), e mais um padrão de relacionamentos e interações, um padrão de organização dos elementos que o constituem.” (Daniel Wahl)


Ou seja, as organizações têm mais vida quão mais qualidade existe nos padrões dessas interações. Quanto mais saudáveis forem os padrões das relações, mais evolutivas as organizações serão.


Pegue qualquer objetivo organizacional: aprendizado, criatividade, evolução, produtividade, performance, adaptabilidade, resiliência, engajamento - e você terá melhores resultados quando o padrão das relações se elevar. E não é só eu que estou falando.


O projeto Aristotle


O Projeto Aristotle foi criado pelo Google para entender o que forma um time perfeito. Durante dois anos estudaram 180 times, e estavam confiantes que encontrariam a mistura perfeita dos traços e habilidades necessários para formar um time estrela.


Mas descobriram que não é sobre as habilidades das pessoas. Ao longo do projeto, a pesquisa revelou que quem está no time importa menos do que como as pessoas interagem. Não é sobre as pessoas, é sobre as relações.


O ciclo de sucesso do Daniel Kim


Na mesma linha, o autor Daniel Kim propõe uma “Teoria essencial de sucesso”. Daniel Kim observou em seu trabalho com organizações, que o sucesso está relacionado aos seguinte fatores inter-relacionados:


  • quando a qualidade das relações entre as pessoas que trabalham juntas aumenta (ou seja, confiança, colaboração, respeito, cuidado),

  • a qualidade do pensamento das pessoas também melhora (as pessoas são capazes de ir mais longe no seu pensamento, ser mais criativas, observar múltiplas perspectivas)

  • consequentemente a qualidade das ações também tende a melhorar (melhores decisões, comprometimento, coordenação, execução)

  • logo, a qualidade dos resultados também aumenta.


Parece óbvio, mas esse não é o pensamento tradicional dos negócios. Os processos, rituais, sistemas e estruturas da maioria das organizações não foram fundamentadas na interdependência e considerando a qualidade das relações como base para a qualidade dos seus resultados. E como poderiam se a própria noção de vida era outra há tão pouco tempo atrás?


O que está mudando?


Me perguntaram recentemente: o que mudou? Por que estamos falando tanto sobre habilidades socioemocionais nas empresas e sobre a importância das relações agora? Isso não é óbvio e deveria estar na base da forma como nos organizamos desde sempre?


Com certeza se relacionar sempre foi importante, mas eu acredito que muita coisa mudou, e na verdade estamos vendo apenas a ponta dessa mudança. Nos últimos anos nossa interdependência multiplicou, estamos cada vez mais conectados e dependentes uns dos outros.


Porém nossa cultura e as instituições herdadas do modelo patriarcal europeu neoliberal não dão conta da qualidade de relações que precisamos para potencializar sistemas.


Contrariando as evidências encontradas pelo Projeto Aristotle e pelo ciclo do sucesso de Daniel Kim, quando líderes são convidados a determinar por que uma iniciativa teve sucesso, a maioria aponta fatores individuais ao invés das interações e conexões.


Muitas organizações ainda atribuem o seu sucesso a uma lista de habilidades e competências, sem identificar como a própria cultura pode agir como incubadora (ou inibidora) para o desenvolvimento de tais competências.


Pessoas se tornam “recursos humanos”, tentamos metrificar o imetrificável, usamos algoritmos e inteligência artificial para decidir quem contratamos e quem demitimos, tentamos consertas as pessoas através de feedbacks negativos e tiramos constantemente as coisas do seu contexto com a ilusão de que assim poderemos conhecê-las, analisá-las, controlá-las.


Esses artefatos da cultura tão presentes nas organizações refletem a forma como nos relacionamos, e são baseados nos princípios de universalização, apropriação, obediência, controle, racionalização, exclusão, narcisismo, meritocracia - presentes em na cultura de toda a nossa sociedade.


E tamanha interdependência facilitada por redes de comunicação cada vez mais avançadas (pelo menos tecnologicamente) não necessariamente aumentam a nossa inteligência. Podemos nos comunicar com qualquer pessoa do mundo em segundos, mas a ciência das redes está revelando que mais conexões estão na verdade reduzindo e não aumentando a inteligência dos nossos sistemas. Pessoas do mundo inteiro estão trabalhando juntas, mas ainda estamos muito longe de criar comunidades baseadas em pertencimento, significado e amor.


Olhe ao redor e verá que esse não é um fenômeno exclusivo das organizações, faz parte da nossa cultura reduzir a vida e a experiência humana para sermos mais racionais, controlarmos as decisões e obtermos um suposto sucesso. Mas esse modelo está ruindo por todos os lados, e ampliar a nossa capacidade de criar conexões significativas é cada vez mais fundamental.


Ao fortalecer as relações, o nosso impacto não só no bem estar e na inteligência dos indivíduos, mas também em todo o sistema. E não estamos falando aqui de uma mudança pequena ou trivial. Mudar a forma com nos relacionamos, transforma a nossa forma de ver o mundo, quem nós somos, e o que fazemos.


Antes de escolher quem vamos deixar viver e deixar morrer no bote, precisamos escolher nos relacionar e aprender a criar conexões significativas. Só assim conseguiremos ampliar a vida em um sistema à beira da morte.





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