Na perspectiva da teoria U, a mente aberta, o coração aberto e a vontade aberta são os 3 instrumentos que nos ajudam a estar no campo social do “presencing” (que em inglês combina sensing com presence = sentir + presença).
Mas esses instrumentos nem sempre são de simples compreensão. Um caminho interessante para acessá-los é conhecer quais são os “três inimigos (como diriam os norte americanos) ou três vozes internas de resistência (como diriam os europeus)” que nos atrapalham nesse processo de abertura.
A mente aberta, o coração aberto e a vontade aberta, são, bloqueados, respectivamente pela Voz do Julgamento, pela Voz do Cinismo e pela Voz do Medo.
A Voz do Cinismo bloqueia o coração aberto e, de acordo com a Teoria U, o seu “antídoto” seria a compaixão.
Mas afinal, o que é o cinismo?
Desde a primeira vez que participei do Laboratório da Teoria U, em 2015, essa "voz" foi uma das que mais me deixou intrigada, pois não estava tão claro pra mim o que é o cinismo, e como ele se apresenta no nosso dia a dia.
Ao longo dos anos, levei a pergunta para amigos e para grupos do Hub do ULab, nos quais trabalhei como facilitadora: “o que você entende por cinismo?”
E ouvi respostas variadas:
“Ser cínico é ser sarcástico com as pessoas“
“Ser cínico é ser falso, agir de forma dissimulada”
“Ser cínico é dizer o contrário do que a gente pensa com ironia”
“Ser cínico é ser hipócrita”
Me ocorreu que, assim como eu, a maioria das pessoas não entendia exatamente o que era cinismo. E que todas as respostas continham um pouco do seu significado, mas não havia consenso, e nenhuma delas satisfazia plenamente, especialmente quando eu tentava levar a conversa para um exemplo prático: - “mas quando é que você se reconhece sendo cínico?”
As respostas também variavam muito:
- “quando eu brinco com a verdade de maneira ruim”
- “ah, eu nunca sou cínico”
- “quando eu tô sem paciência com a pessoa com quem estou conversando eu uso do cinismo para fazer ela se sentir mal”
Enquanto corrente filosófica, o cinismo pregava desprezo pelos bens materiais e pelo prazer. Para os cínicos, as pessoas tem que “ser exemplos vivos daquilo que afirmam”. Mas isso não parece de todo ruim, né? Afinal, ser exemplo daquilo que se afirma é algo coerente.
Então, o que faria com que o cinismo impedisse nossa abertura de coração?
No dicionário o significado de cinismo é: “comportamento ou ação de cínico, de quem demonstra desprezo pelas normas sociais ou pela moral estabelecida; atrevimento, descaramento, despudor.”
Essa explicação também não me ajudou muito, porque não trouxe clareza sobre a presença do cinismo em situações reais.
Fui buscar a diferença entre o comportamento do cínico e do hipócrita:
De acordo com Moysés Pinto Neto “O hipócrita diz uma coisa e faz outra. O cínico é o inverso do hipócrita. O hipócrita reconhece a validade da norma moral, afirma a validade da regra moral, mas ele não cumpre, portanto falha na performance. Já o cínico não reconhece a validade da norma moral. Ele faz exatamente aquilo que ele diz, só que o que ele diz pode ser um absurdo.”
Compreendi, assim, que o hipócrita aceita as convenções sociais e fica envergonhado quando é pego em uma mentira. Já o cínico, não sente vergonha e, em seu discurso, busca desconstruir todo tipo de convenção social que, para ele, são baseadas em mentiras.
Os cínicos, desapegados das convenções sociais e percebendo-as como fraudadas, se sentem superiores. E é essa superioridade ou indiferença perante “o outro” que faz com que a pessoa imbuída de cinismo atue com frieza, insensibilidade, apatia, desatenção e distância.
Compreender essa diferenciação começou a iluminar melhor esse conteúdo, mas, acreditando que as citadas “vozes de resistência” habitam, com certa frequência, as nossas atitudes, não consegui reconhecer com tanta facilidade como o cinismo poderia estar presente na vida das pessoas (inclusive na minha).
Até que um dia, conversando com uma participante de um processo de facilitação que estava conduzindo em uma empresa, finalmente consegui acessar a essência desse conceito, e compreender porque o cinismo era uma voz de resistência para acessar o coração aberto (como ela me autorizou, compartilho essa história abaixo).
Afinal, como praticamos o cinismo no dia a dia?
Aqui cabe um breve contexto: essa mulher trabalhava há 10 anos em uma mesma empresa, e era líder do RH, ou seja, ficava a cargo dela ouvir questões envolvendo as pessoas que compunham a empresa e tomar algumas decisões. Todos os sábados havia um plantão de atendimento a clientes e os funcionários faziam um rodízio para cobrir esse horário de trabalho.
Ao longo dos anos, essa mulher lidou com todo tipo de argumento das pessoas para não trabalharem aos sábados, e passou a acreditar que todos os pedidos para alteração deste horário eram “desculpas” para escapar do plantão.
Para um dos funcionários essa era uma situação especialmente complicada, pois nos últimos três meses estava com um familiar doente em casa, e os sábados eram dias difíceis para ele, que seguia comparecendo ao plantão.
Um dia, almoçando juntos, esse funcionário mencionou com ela o seu contexto familiar, compartilhando a sua situação pessoal e a doença do ente querido. Ela imediatamente pensou que ele estava usando da doença do familiar para sensibilizá-la, porque queria ser dispensado de cumprir o plantão, se fechou e não quis aprofundar no assunto para não “dar abertura” para nenhum outro pedido nesse sentido.
Ao compartilhar essa história comigo, ela me disse que se sentiu mal, mas que teve que agir de acordo com o que ela tinha aprendido na sua experiência ao longo dos anos e descredibilizar a história do funcionário. A meu ver, ela trouxe uma racionalidade que talvez estivesse desconectada do que realmente sentia, mas que estava alinhada com o que acreditava. E foi aí que eu entendi a presença do cinismo.
Por mais que as normas sociais e morais apontem para o acolhimento da dor, e das pessoas que tenham familiares doentes, por mais que que aquele funcionário estivesse buscando apenas um momento de conexão, ou um apoio emocional, ela reagiu com insensibilidade e apatia por acreditar que existia um "motivo secreto" por trás da atitude dele e se afastou.
Foi nessa troca sincera com ela que consegui perceber quando é que somos cínicos em nosso dia a dia...
Não é um puro desprezo pelas convenções sociais:
. é um posicionamento de acordo com o que você pensa sobre o mundo
. mesmo que esse seja um posicionamento contrário àquilo que você realmente sente
. ou que seja um posicionamento que descredibiliza o que as outras pessoas sentem
E quando é que fazemos isso?
Em diversos momentos podemos atuar de forma cínica. Quando pensamos que os defensores do meio ambiente têm intenções secretas por trás de sua causa, ou que todas as ONG´s extraviam dinheiro para interesses pessoais, ou que aquela pessoa não gosta de você e só está se aproximando por interesses próprios; ou que os moradores de rua são “desocupados”.
O cinismo reforça a si mesmo, alimentando inseguranças, falsificando afetos, que fortalecem a descrença e promovem o distanciamento.
Na sua raiz estão a desconfiança, a insegurança e a baixa autoestima. E não se engane!: em alguma medida somos todos desconfiados, inseguros e com baixa autoestima.
Agimos portanto, de forma cínica, quando desconsideramos o outro por acreditar que nosso pensamento carrega maior lucidez ou verdade, e nos achamos superiores por isso .
Por isso o cinismo é uma voz interna de resistência ao Coração Aberto, porque nos impede de ser empáticos e de acessar o lugar do outro. Para fazer isso, precisamos incorporar mais compaixão nas nossas atitudes e usá-la como uma lente para ver o mundo.
Enfim, foi essa abordagem “sociopsicológica” do cinismo me ajudou a compreender um pouco mais desse mecanismo que dificulta as relações interpessoais e, que na perspectiva da Teoria U, nos afasta de experimentar o presencing. Espero que também te ajude a reconhecer quais são as suas atitudes emocionais de distanciamento - em contextos pessoais e profissionais - que te atrapalham a acessar a abertura do coração. . .
. Se quiser ler outros textos sobre a Teoria U baixe o ebook da Marina Galvão: Teoria U e suas Interfaces: https://www.institutoamuta.com.br/blog
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